Páginas

7.1.09

Conto

Dom Casmurro às avessas

Pela primeira vez chorei. Os homens devem ter achado esquisita a forma como os abandonei à mesa. É evidente que não havia cheiro de fumaça e nem nada no forno que pudesse estar queimando, como aleguei, e é evidente também que não tenho idade para já sofrer de alucinações. Aguardaram em silêncio o meu regresso da cozinha, mas, como nada acontecia, deram de ombros e continuaram sua discussão entusiasmada, que escutei detrás das paredes. “Logo ela volta! Capitu, quando cisma, cisma. E pronto”.

Sempre que o meu Bentinho traz Escobar para almoçar conosco, sinto um algo que não sei explicar. Escobar é gentil e muito atraente. Cuido que até teria vindo perguntar o que me acometia, se não estivesse tão envolvido com a insistência de meu marido: “Não é nada, Escobar. Logo ela volta. Fique, fique”. Estarei com ciúmes? De mulher alguma, nenhum pensamento como este veio me importunar. Sei que tenho Bentinho preso a mim, quase que nascemos juntos. Mas Bentinho não é meu, é de Escobar.

Bentinho o ama. Algumas noites, até ouço da boca dele a pronúncia indubitável do nome de Escobar. E não me ofendo, sinceramente. Mas aí, quando vejo os dois à mesa, conversando sobre o tempo no seminário e expondo, em cima do meu orgulho, que tiveram uma grande história juntos, quase uma aventura épica e juvenil, sinto este algo; um misto de antíteses. Por um lado, me vejo como uma pedra no sapato, sempre ali, atrapalhando o momento mágico dos dois. Por outro, e esse é o comportamento mais intrigante que meu coração jamais teve, sinto-me necessária para um convívio saudável entre os dois. Escobar casou-se primeiro. Tenho, ainda, convicção suficiente de que ele não tem sentimentos por Bentinho, além de estima e companheirismo. Mas meu marido ama esse homem como nunca poderá amar a nada e a ninguém. Nem mesmo a mim, sua esposa, nem mesmo à mãe.

Escobar ou não vê, ou finge que não vê. Certa estou apenas de que não corresponde. É nítido por seu postar-se à mesa, até por certa frieza. Mas, e Bentinho... saberá que ama? Saberá ele que, apesar de toda a afeição que temos um pelo outro, não fomos feitos para compartilhar-mo-nos? Já não sei o que faço.

Por esses dias, Sancha e eu conversávamos como de costume, mas notei-lhe certa insatisfação, não sei por quê. Fez uma pergunta estranha, apesar de aparentemente relutar muito. Falava-me: “E Santiago? Estão bem? Digo, tu e ele?”. Não entendi como a pergunta veio a calhar numa discussão que, até então, parecia-me amena e sem profundo envolvimento de ambas. “Sim, Sanchinha. Estamos muito bem...” Não foi suficiente. Continuou: “Refiro-me ao casamento. Era mesmo o que vocês queriam? Digo isso porque eu mesma me pergunto, às vezes. Sem filho, então!”. Realmente, um filho fazia-me muita falta, mas ainda assim fiquei perplexa. Só pude concluir que Sancha estava insatisfeita com Escobar por algum motivo, que não me cabe saber, claro.

Mas então seria o fim. Se o casamento dos dois amornasse, o que restaria do meu? Os problemas de Sancha não são, absolutamente, meus. Mas todos os problemas de Bentinho resumem-se a Escobar. Se Sancha não trata bem a Escobar e Escobar não mais tem interesse por Sancha, é capaz de Bentinho se tocar e largar-me de vez. Mesmo que só em pensamento. Só quero o bem ao meu marido, mesmo que para isso seja preciso que eu me afaste. Mas não posso ser feliz com este dilema. Amanhã mesmo, conversarei com Escobar. Não entregarei o jogo, só quero sondar os pensamentos dele, levantar hipóteses. Mas espero que Bentinho não descubra que eu fui ter com Escobar, porque, senão, é capaz de ficar de ciúmes...